quarta-feira, 27 de abril de 2011

Contrariedades


Eu hoje estou cruel, frenético, exigente
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa
Obtém dinheiro, arranja a sua "cotterie"
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulaçãao repugna aos sentimento finos
Eu raramente falo aos nossos literatos
E apuro-me em lançar originais e exactos
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas
Não foge do estendal que lhe humedece as casas
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas
Conseguirei reler essas antigas rimas
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague"
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto, ainda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

[Cesário Verde]

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