terça-feira, 19 de junho de 2012

Entre os teus lábios

Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


[Entre os teus lábios ]

segunda-feira, 18 de junho de 2012

No acaso da rua

 
No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.


A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.


Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.


Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!


Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade

Numa outra espécie de rua;

Por que todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?


Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal ...


Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.


[Álvaro de Campos]

domingo, 17 de junho de 2012

O AUTO-RETRATO

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

[Mário Quintana]

sábado, 16 de junho de 2012

FADO

Música triste
desenganado
canto nocturno
a pouco e pouco
vai penetrando
meu coração

Nocturna prece
ou pesadelo
não sei que sombra
aquele canto
em mim deixou.

Febre ou cansaço?
Não sei! Nem quero.
lúgubre pranto
de roucas vozes
não tem beleza
só emoção.

É como um eco
de noites mortas
de vidas gastas
ao Deus dará.

Mas eu o recebo
dentro de mim.
Entendo. Choro.
Eu o recebo
Como um irmão.

[Adolfo Casais Monteiro]

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Vida

Três votos fará aquele
que não ser tolo decida
e venha deles primeiro
o de obediência à vida

será o segundo a vir
o de não querer ser rico
o muito passe de largo
o pouco lhe apure o bico

não violar-se a si próprio
como principal o veja
alto ou baixo gordo ou magro
assim nasceu assim seja.

[Agostinho da Silva]

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne
A exangue máscara de cera
Cercada de flores
Que apodrecerão felizes! num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
Sem deixar sequer esse nome.

[Manoel Bandeira]

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Nenhuma Morte Apagará os Beijos

 Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos
 ou pelas ruas clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.

Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor.
Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes
a nossa alma líquida e atormentada
                                                            

desvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.

[Joaquim Pessoa]

terça-feira, 12 de junho de 2012

Menino

 No colo da mãe
a criança vai e vem
vem e vai, balança.
Nos olhos do pai
nos olhos da mãe
vem e vai,vai e vem
a esperança.

Ao sonhado futuro
sorri a mãe, sorri o pai.
Maravilhado
o rosto puro da criança
vai e vem,vem e vai
balança.

De seio a seio
a criança
em seu vogar
ao meio
do colo-berço
balança.

Balança
como o rimar
de um verso
de esperança.

Depois quando
com o tempo
a criança
vem crescendo
vai a esperança
minguando.
E ao acabar-se de vez
fica a exacta medida
da vida
de um português.

Criança
portuguesa
da esperança
na vida
faz certeza
conseguida.
Só nossa vontade
alcança
da esperança
humana realidade.

[Manuel da Fonseca]

segunda-feira, 11 de junho de 2012

A Montanha por Achar

A Montanha por achar
Há de ter, quando a encontrar
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.

O santuário que tiver
Quando o encontrar, há de ser
Na montanha procurada
E na gruta ali achada.

A verdade, se ela existe
Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade
Porque a vida é só metade.

[Fernando Pessoa]