sábado, 23 de outubro de 2010

Poema do alegre desespero

Poema do alegre desespero

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto:
o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império,
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil
e o Estrabão, o Artaxerpes e o Xenofonte e o Heraclito
e o desfiladeiro das Termópilas e a mulher do Péricles e a retirada dos dez mil
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio
 e passavam a vida inteira a fazer guerras
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio
e o resto tudo por aí fora
e a Guerra dos Cem Anos
e a Invencível Armada
e as campanhas de Napoleão
e a bomba de hidrogénio
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

[António Gedeâo]

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