quarta-feira, 13 de abril de 2011

Mar absoluto

Mar absoluto

Foi desde sempre o mar
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos
de linhos, de cordas, de ferros
de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas
e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas
campos convertidos em velas
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.

E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona
parece-nos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar
multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta
uma solidão para todos os lados
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos
matando-se e recuperando-se
correndo como um touro azul por sua própria sombra
e arremetendo com bravura contra ninguém
e sendo depois a pura sombra de si mesmo
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra
ele que, ao mesmo tempo
é o dançarino e a sua dança.

Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave
entrega-se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado, cego, nu dono apenas de si
da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades
mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível
igual a ele, em constante solilóquio
sem exigências de princípio e fim
desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei
que há outras ordens, que não foram ouvidas
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante
nódoa líquida e instável
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

[Cecília Meireles]

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