segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sem depois

("Sol Poente", de Tarsila do Amaral, 1929)

Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos
se desfizeram em redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei a minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.


[Mia Couto]

1 comentário:

  1. É por demais belo este poema! Tão simples, tão cheio de tudo!
    Belíssima escolha!

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