segunda-feira, 26 de março de 2012

O Cerimonial das Mãos

Mãe
onde foi que deixaste a outra metade
a que anunciava o sol na turvação das noites
a que iluminava a sombra no cerimonial das mãos?
Em que côncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projectada
para fora de mim como um sonho
 evadindo-se do círculo de medos
 em que a fúria se jogava?

Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava à revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?

Mãe
 eu pedia uma trégua ao vento
e um punhal à chuva e com ambos
 queria separar de mim a metade incandescente
que à beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.

Mãe
 eu vejo-me outro nesta cama
que guarda os instrumentos
 liquefeitos da insónia
e sei que não sou eu quem lá está
que não sou eu que lá quero estar.

[José Jorge Letria]

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