Mãe
onde foi que deixaste a outra metade
a que anunciava o sol na turvação das noites
a que iluminava a sombra no cerimonial das mãos?
Em que côncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projectada
para fora de mim como um sonho
evadindo-se do
círculo de medos
em que a fúria se
jogava?
Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava à revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe
eu pedia uma
trégua ao vento
e um punhal à chuva e com ambos
queria separar de
mim a metade incandescente
que à beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.
Mãe
eu vejo-me outro
nesta cama
que guarda os instrumentos
liquefeitos da
insónia
e sei que não sou eu quem lá está
que não sou eu que lá quero estar.
[José Jorge Letria]
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