quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

À memória de Fernando Pessoa

À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente
Falar-me nessa lúcida visão
Estranha, sensualíssima, mordente
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses
Meu pobre e grande e genial artista
O que tem sido a vida, esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas
Tristíssima, pedante e contrafeita
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão.
Se eu pudesse, Fernando e tu me ouvisses
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos
As noites sempre iguais, os mesmos dias
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar
Num cântico de sonho. E junto dele
Do camarada raro que lembramos
Fiquemos uns momentos a cantar!


[António Botto]

Sem comentários:

Enviar um comentário