sábado, 8 de janeiro de 2011

Além-tédio

Além-tédio

Nada me expira já, nada me vive
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia
E doente de novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio
Eu próprio me traguei na profundura
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

                  [Mário de Sá-Carneiro]

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