domingo, 9 de janeiro de 2011

Não Se Pode

Não Se Pode

Quando eu era menino andava em voga
A história da "Não se Pode",
Uma mulher esguia, que de toga
Como um fantasma, à toa, de pagode
Altas horas da noite então vagava.

E quando alguém seu nome perguntava
Invariavelmente respondia,
Com a voz cava e cheia de agonia:
"Não se Pode!" "Não se Pode!"

Era um fantasma esquisito e feio
De estatura comum, mas que crescia
Toda vez que cigarros acendia
Nos lampiões das esquinas e do passeio.

Escaveirada, de carão ossudo,
olhos sem brilho, sem nenhum clarão,
A "Não se Pode" era um duende mudo
Alma penada pela solidão.

Soldados de patrulha da cidade
Uma noite entenderam de segui-la.
Mas a "Não se Pode", como um cão de fila,
Evitava qualquer intimidade.

Suas pegadas no chão jamais se viu

E do velho quartel para o mercado,
Seus pontos preferidos,
Era como um vulto malfadado
Dos mistérios do além, desconhecidos...

E quando uma noite fugia pelo espaço
"Não se Pode" também no seu regaço
Em fumaças de pós se desfazia...

A minha alma também é assim
Se alguém sacode
Os sofrimentos que meu peito esconde
Pressurosa e bem triste ela responde:
"Não se Pode!" "Não se Pode!"

            [João Francisco Ferry]




João Francisco Ferry nasceu em Valença do Piauí a 16 de abril de 1895, recebendo as lições da primeiras letras dos seus próprios pais, no casarão espaçoso à entrada de sua terra. De origem humilde, João Ferry não teve condições de continuar os estudos, tornando-se poeta "mais pela saudade e pela desgraça perene da terra", como assinala J. Miguel de Matos. A poesia de João Ferry tem duas fases. A fase do parnasianismo multiforme, onde o lirismo solto e livre predomina sobre a métrica e a uniformidade estilística. A segunda é a compreensão dos rumos novos a que se destinava a poesia, procurando libertar-se dos processos matemáticos da métrica e da forma. Ensaiou passos na direção dessa nova ordem, mas não prosseguia a caminhada. Não teve tempo. Sensibilidade visível e forte, "Ferry morreu como viveu, carregando ao longo dos sessenta e seis anos bem vividos as amizades que fez, deixando amizades e, em todas elas, uma revolta imensa contra a morte, que o chamou tão cedo para o convívio sem angústia da eternidade", como exaltou Eulino Martins, no empolgante panegírico que proferiu sobre o seu túmulo. Poeta, jornalista, teatrólogo. Suas peças, levadas à encenação em todo o Estado, marcaram os primórdios da arte teatral no Piauí. Membro da Associação Profissional dos Jornalistas e do Cenáculo Piauiense de Letras. Patrono da Cadeira 38 da Academia Piauiense de Letras.

          Obras: Princípios (1914); Os Meus Sonetos (1916); Vós a Voz, Avós a Vós (Conferência Literária - 1920); Em Busca de Luz (1922); Quem Tudo Quer, Tudo Perde (comédia, 1922); O Cabeção (1937); Chapada do Corisco (1952).

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