quinta-feira, 3 de março de 2011

Adeus, Lisboa

óleo de Real Bordalo

Adeus, Lisboa

Vou-me até à Outra Banda
no barquinho da carreira.
Faz que anda mas não anda
parece de brincadeira.
Planta-se o homem no leme.
Tudo ginga, range e treme.
Bufa o vapor na caldeira.
Um menino solta um grito
assustou-se com o apito
do barquinho da carreira.
Todo ancho, tremelica
como um boneco de corda.
Nem sei se vai ou se fica.
Só se vê que tremelica
e oscila de borda a borda.

Chapas de sol, coruscantes
como lâminas de espadas
fendem as águas rolantes
esparrinhando flamejantes
lantejoulas nacaradas.
Sob o dourado chuveiro
o barquinho terno e mole
vai-se afastando, ronceiro
na peugada do Sol.

A cada volta das pás
moendo as águas vizinhas
nos remoinhos que faz
nos salpicos que me traz
e me enchem de camarinhas
há fagulhas rutilantes
esquírolas de marcassites
polimentos de pirites
clivagens de diamantes

Numa hipnose colectiva
como um friso de embruxados
ao longe os olhos cravados
em transe de expectativa
todos juntos, na amurada
numa sonolência de ópio
vemos, na tarde pasmada
Lisboa televisada
num vasto cinemascópio.
O sol e a água conspiram
num conluio de beleza
de elixires que se evadiram
de feiticeira represa.
Fulva, no céu incendido
em compostura de pose
a cidade é colorido
cenário de apoteose.
Há lencinhos agitados
nos olhos de todos nós
engulhos de namorados
embargamentos na voz.
Nesta quermesse do ar
neste festival de tons
quem se atreve a acreditar
que os homens não sejam bons?

Adeus, adeus, ribeirinha
cidade dos calafates
rosicler de água-marinha
pedra de muitos quilates.
Iça as velas, marinheiro
com destino a Calecu.
Oh que ventinho rasteiro!
Que mar tão cheio e tão nu!
Ó da gávea! Põe-te alerta!
Tem tento nos areais.
Cá vou eu à descoberta
das índias Orientais.
Não tenho medo de nada
receio de coisa nenhuma.

A vida é leve e arrendada
como esta réstea de espuma.
Toda a gente é séria e é boa!
Não existem homens maus!
Adeus, Tejo! Adeus Lisboa!
Adeus, Ribeira das Naus!
Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!

[António Gedeão]

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