terça-feira, 3 de maio de 2011

Câmara Escura

    Devagar,
    Hora a hora
    Dia a dia
    Como se o tempo fosse um banho de acidez
    Vou vendo com mais funda nitidez
    O negativo da fotografia.

    E o que eu sou por detrás do que pareço!
    Que seguida traição desde o começo
    Em cada gesto
    Em cada grito
    Em cada verso!
    Sincero sempre, mas obstinado
    Numa sinceridade
    Que vende ao mesmo preço
    O direito e o avesso
    Da verdade.

    Dois homens num só rosto!
    Uma espécie de Jano sobreposto
    Inocente
    Impotente
    E condenado
    A este assombro de se ver forrado
    Dum pano de negrura que desmente
    A nua claridade do outro lado.



[Miguel Torga]

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