Devagar,
Hora a hora
Dia a dia
Como se o tempo fosse um banho de acidez
Vou vendo com mais funda nitidez
O negativo da fotografia.
E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo
Em cada gesto
Em cada grito
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.
Dois homens num só rosto!
Uma espécie de Jano sobreposto
Inocente
Impotente
E condenado
A este assombro de se ver forrado
Dum pano de negrura que desmente
A nua claridade do outro lado.
[Miguel Torga]
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