domingo, 31 de julho de 2011

Serradura

Elise Hardy – Place du Tertre (Montmartre)

 
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está
Estendida, a perna traçada
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.
Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias
Espapaçou-se de calma
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock
Lê o “Matin”de castigo
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:
Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo
Ou comichão que não passa.

Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...
O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...
Qualquer dia, pela certa
Quando eu mal me precate
É capaz dum disparate
Se encontra a porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:
O que era fácil, partindo
Os móveis do meu hotel
Ou para a rua saindo
De barrete de papel
A gritar Viva a Alemanha...
Mas a minha Alma, em verdade
Não merece tal façanha
Tal prova de lealdade...

Vou deixá-la,  decidido
No lavabo dum Café
Como um anel esquecido.
É um fim… mais raffiné.

[Mário de Sá-Carneiro]

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