sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Álcool



Guilhotinas, pelouros e castelos

Resvalam longamente em procissão

Volteiam-me crepúsculos amarelos

Mordidos, doentios de roxidão.



Batem asas d' auréola aos meus ouvidos

Grifam-me sons de côr e de perfumes

Ferem-me os olhos turbilhões de gumes

Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.



Respiro-me no ar que ao longe vem

Da luz que me ilumina participo

Quero reunir-me  e todo me dissipo

Luto, estrebucho... Em vão! Silvo para além...



Corro em volta de mim sem me encontrar...

Tudo oscila e se abate como espuma...

Um disco de ouro surge a voltear...

Fecho os meus olhos com pavor da bruma...



Que droga foi a que me inoculei?

Ópio d' inferno em vez de paraíso?...

Que sortilégio a mim próprio lancei?

Como é que em dor genial eu me eterizo?



Nem ópio nem morfina. O que me ardeu

Foi  álcool mais raro e penetrante:

É só de mim que eu ando delirante

Manhã tão forte que me anoiteceu.



[Mário de Sá-Carneiro]