sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Crise lamentável

Gostava tanto de mexer na vida
De ser quem sou,  mas de poder tocar-lhe...
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente
Não ter juízo nos meus livros
Mas chegar ao fim do mês sempre
com as despesas pagas religiosamente.

Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas
À minha Torre ebúrnea abrir janelas
Numa palavra e não fazer mais cenas.

Ter força um dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai.
Não mandar telegramas ao meu Pai
Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair
não precisar de hora e meia
 antes de vir prà rua.
Pôr termo a isto de viver na lua,
Perder a frousse das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento

Que tudo é em fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete
E sempre o Oiro em chumbo se derrete
Por meu Azar ou minha Zoina suada...

 (Paris - Janeiro 1916.)



[Mário de Sá-Carneiro]



Pintura óleo sobre Cartão e Tela
(Mário de Sá Carneiro raptando Maria Helena Vieira da Silva, 1972)
Mário Cesariny

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