sexta-feira, 2 de março de 2012

Quando Eu For Pequeno

 Quando eu for pequeno, mãe
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe
nenhum de nós falará da morte
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena
lenço branco na mão com as iniciais bordadas
anunciando que vai voltar
 porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.

[José Jorge Letria]

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