sábado, 21 de abril de 2012

CINQUENTA ANOS DEPOIS


CARTA DO CANADÁ
Fernanda  Leitão

 
Participei da greve nacional de estudantes universitários,  começada em  Lisboa em 24 de Março de 1962,   lado a lado com  largos milhares de outros estudantes. A greve foi consequência da proibição, pelo governo de Salazar, das celebrações do Dia do Estudante. O aparato policial foi impressionante a cercar a Cidade Universitária. Perante o facto, Marcelo Caetano, então Reitor da Universidade Clássica de Lisboa, falou aos milhares de estudantes concentrados frente às Faculdades de Letras e Direito: verificava que, lamentavelmente, de novo o poder executivo pisava o poder legislativo e,visto isso, estavam todos  os estudantes convidados a jantar no restaurante Castanheira de Moura, ao Lumiar.  Ordeiramente, muitos estudantes dirigiram-se ao restaurante e, quando ali chegaram, foram violentamente espancados pela polícia de choque. Estava aberta a guerra entre academia e regime, que rapidamente alastrou a outras universidades do país. Como seria de esperar, surgiram líderes: Eurico Figueiredo, Jorge Sampaio, Victor Wengorovius, Joaquim Mestre, José Medeiros Ferreira e outros. O Prof. Lindley Cintra, por ser solidário com os estudantes, foi barbamente espancado mas não desistiu. Foi então que se ouviram as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. Nasceram as baladas de protesto.  A repressão foi brutal: foi a hora de (triste) glória do capitão Maltez e de polícias de uma aterradora boçalidade. Dali a poucos meses, muitos daqueles jovens eram mobilizados para a guerra de Angola e colocados nas linhas da frente, depois de umas recrutas que ficaram célebres pelo abuso e brutalidade. Teve então lugar uma emigração a salto, que foi uma verdadeira hemorragia para o país, pois o regime só tinha para oferecer a guerra em África ou a penúria em território europeu.
     Um ano antes, quando rebentou a guerra em Angola, um nutrido grupo de membros da Casa dos Estudantes do Império, de que fui a sócia 450, apareceu numa manifestação (de voluntários à força) em apoio a Salazar, e foi espancado com requintes de brutalidade pela GNR a cavalo porque resolveu acompanhar a palavra de ordem orquestrada pelos mentores do regime: Angola é Nossa. Ficámos a perceber que Angola não era nossa, era “deles”. E passámos a chamar à GNR a cavalo a “fracção imprópria”. Nos meses que se seguiram, ondas de estudantes ultramarinos rumaram ao exílio e radicalizaram a sua posição,o que redundou em perda para Portugal e para as colónias.
     Julgou-se, ingénuamente, que a revolução de 1974 traria o bom senso elementar de educar as forças policiais,  apelando à inteligência e ao facto de serem os seus elementos pessoas do Povo, tornando-os de exemplar civismo e fazendo deles pessoas compreendendo cada situação, de modo a saberem que a mão pesada é para criminosos e terroristas, a exemplo do  que se passa em  países civilizados. Enganámo-nos.
     No consulado de Cavaco Silva, o nunca por demais louvado Dias Loureiro, esse varão impoluto, que era então  ministro da Administração Interna, mandou a polícia de choque espancar emigrantes idos de países da Europa e do Canadá, por se terem manifestado em frente do Ministério da Justiça pelo facto de todas as suas poupanças terem sido roubadas pela Caixa Económica Faialense, cujos dirigentes eram barões do PSD.
     Volta e meia, em bairros problemáticos, as forças policiais carregam forte e feio sobre pessoas que desesperam de encontrar trabalho, escola, dignidade.
     E agora, no  Porto, no problemático bairro da Fontinha, de novo foi a brutalidade cega da polícia sobre um grupo que ocupou um imóvel abandonado e o transformou num espaço onde os moradores podiam ler, ver filmes, pintar, fazer teatro, cantar, aprender a ler e escrever, um espaço de generosidade e solidariedade. Um grupo como devia haver às centenas pelo país,  sobretudo nesta hora de incerteza e escassez, que congregava as pessoas pelo saber, o conhecimnto, e não pela violência. Depois de baterem à farta, as chamadas forças da ordem partiram portas e janelas, destruíram tudoo que encontraram naquele espaço, numa raiva irracional.
     Resumindo: para mal de todos, polícia incluída, a boçalidade continua.   
 Provavelmente porque é uma emanação de quem tutela e porque quem tutela tenta não sentir medo promovendo a violência.

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